Falsos diagnósticos de PHDA e efeitos do metilfenidato / Ritalina
A propósito do programa transmitido pela RTP * Cérebro meu – falsos diagnósticos de PHDA e os efeitos do metilfenidato / Ritalina – são levantadas uma série de questões que não nos podem deixar indiferentes.
O diagnóstico de Perturbação de Hiperatividade / Défice de Atenção (PHDA) não pode ser tomado de forma leviana pela primeira aparência. É uma regra de ouro da arte médica a importância da anamnese clínica cuidada e a recolha de informação de diferentes elementos, analisados de forma integrada.
No diagnóstico de PHDA, é essencial considerar outras causas de desatenção e hiperatividade, incluindo variações cognitivas e comportamentais aceitáveis para a idade, desadequação pedagógica, práticas educativas ineficazes, disfunção familiar, ansiedade, depressão, autismo, atraso no desenvolvimento, défice intelectual, disfunção familiar, perturbações da vinculação, entre outras. “Nem tudo o que mexe é PHDA” disse certa vez numa entrevista para um artigo, e é bem verdade. Depois, é fundamental que seja considerado o impacto da desatenção e dos problemas de comportamento na vida criança. Trata-se de um diagnóstico complexo, realizado com a avaliação do comportamento, eventualmente auxiliado por testes de atenção e da avaliação de outras funções executivas em alguns casos.
Mas é importante esclarecer que não existe nenhuma evidência científica de que o doseamento de neurotransmissores nem outro tipo de análise química seja útil no diagnóstico da PHDA ou do Autismo. O problema dos neurotransmissores está no cérebro, não no sangue. Não é útil para confirmar e não é útil para excluir. A verdade científica demonstra-se com estudos bem elaborados, não se estabelece com a opinião ou experiência de alguém. É muito errado disseminar esta informação falsa que só pode beneficiar os laboratórios que fazem estas análises. As crianças, não.
Num congresso recente sobre PHDA, que reuniu os maiores especialistas e investigadores mundiais nesta área, ficou bem patente que a PHDA é uma situação muito heterogénea. As crianças que recebem este diagnóstico são muito diferentes e, provavelmente por isso, não foi possível ainda identificar nenhum teste químico útil para o diagnóstico.
Os medicamentos que são prescritos para a PHDA são como todos os outros – são para usar apenas quando existe uma razão clínica, enquanto for necessário e se produzirem um efeito benéfico. O fármaco de primeira linha é o metilfenidato que ficou mais conhecido por um dos seus nomes comerciais, a tão falada Ritalina (para além do Rubifen, Concerta). Sim, podem ter efeitos secundários como todos os medicamentos, até mesmo os ditos “produtos naturais”. O tratamento tem de ser estabelecido por um médico com experiência nesta área, com monitorização dos efeitos e da necessidade de reajustes ao longo do tempo.
Frequentemente, as crianças não notam nenhum efeito da medicação, quem nota são os pais e os professores. Mas é preciso que alguém note! Se ninguém nota efeito benéfico, não vale a pena continuar. Os efeitos indesejáveis, quando presentes, devem ser comunicados ao médico, de forma a ajustar um tratamento adequado.
Sim, existem pessoas que consomem este e outros medicamentos de forma errada, sem indicação nem supervisão médica, por sua conta e risco, misturando-os até com outras substâncias. Contudo, este facto não invalida a utilidade e a segurança do uso do metilfenidato no tratamento da PHDA com a orientação de um médico.
O que é lamentável na peça jornalística referida, é a tentativa de generalizar ou “fazer regra” a partir de experiências pontuais negativas, ignorando os milhares de crianças a quem a medicação ajuda de facto. A medicação tem ajudado a interromper muitas espirais negativas de baixo desempenho, mau comportamento, má auto-estima, desmotivação escolar, depressão, envolvimento em comportamentos de risco, incluindo o risco de acidentes, consumo de substâncias, envolvimento em delinquência e exclusão social.
Contudo, é importante realçar que a medicação não é tudo e não resolve tudo. A PHDA é um desafio que precisa de ser abraçado por todos: a criança, os pais, a escola, os médicos e psicólogos, a comunidade. Existem múltiplas medidas que podem ser aplicadas e que fazem toda a diferença. Estas medidas podem ser de natureza pedagógica, comportamental, podem envolver a forma como se comunica, a organização dos ambientes, dos horários e das rotinas, ou outras intervenções específicas. É este modelo de intervenção combinada – chamada de intervenção multi-modal – que produz os melhores resultados, ajustada ao perfil de cada criança e reajustada ao longo do tempo de acordo com a evolução e o sucesso das medidas anteriores.
Outra ideia errada é que a PHDA foi inventada por Leon Eisenberg em 1969 ou posteriormente. Nem precisava: a PHDA sempre existiu e foram encontrados relatos médicos que descrevem muito bem estes sintomas pelo menos desde o século XVIII.
Em alguns países como os EUA, pode existir um diagnostico excessivo de PHDA, em zonas com prevalências até 14%. A prevalência mais consensual é 5%, bastante conservada entre os continentes. Não existe uma epidemia de PHDA mas existe um maior reconhecimento e uma pressão crescente sobre o desempenho que torna mais evidentes as dificuldades da PHDA, por vezes em idades mais tardias.
A sociedade da informação trouxe-nos muita informação útil mas também um grande desafio: distinguir o que tem fundamento, o que é fidedigno, o que é verdade, o que é generalizável, o que se aplica à nossa realidade e ao nosso caso. Nem tudo o que aparece no Google/Internet é verdade, alertam também os jornalistas.
Analise bem as suas fontes de informação sobre a PHDA: quem escreveu, com que objetivo, de onde vem esse conhecimento, se está fundamentado com fontes credíveis, se a informação é coerente ou “bate-certo” com a de outros especialistas bem identificados, se a explicação é racional, ou se lhe querem vender algum produto, serviço ou método “milagroso”. Esclareça as suas dúvidas com os profissionais de saúde em quem confia e decida com liberdade, de forma verdadeiramente esclarecida.
* O programa transmitido no dia 6 de junho de 2015
Atualizado em 12-3-2017
Obrigada por, de forma simples e objetiva, esclarecer tantos comuns mortais envolvidos naquilo que pretendem fazer de “polémica”. Assunto tão sério este.
Marisa Romero – Psicóloga
Muito bom texto! Vou partilhar.
Sou psiquiatra de adultos e coordeno uma unidade de patologia dual (associação de doença mental e consumo de substancias). Cerca de 10% dos nossos doentes têm PHDA, não foram diagnosticados nem tratados na infancia, são dependentes de substancias, têm escolaridade abaixo das suas capacidades, cometeram crimes e tê problemas legais graves, têm hepatite C e HIV. Se tivessem sido dignosticados e devidamente tratados na infancia, poderiam ter sido pessoas saudaveis, com vidas equibradas e estaveis. Quem faz afirmações pseudo cientificas e populistas em orgãos de comunicação social, publicidades subliminares e baratas, devia ter de responder por isso. Psicofobia é crime.
Concordo em absoluto com todas as observações. Efectivamente a medicação é, ou deveria ser, o topo da pirâmide no diagnóstico e intervenção na PHDA. Inclusive deveria ser assumida com auxílio transitório por curto prazo até que outros métodos, particularmente a orientação comportamental e educativa, possam surtir os seus efeitos. Tanto na reportagem como na atitude mais generalizada em Portugal a situação é sempre assumida como crônica com passagem maioritaria para a idade adulta.
Parabéns pelo comentário.